Acabei de ler o famoso “Onde os velhos não têm vez”. Trata-se de meu primeiro romance de Cormac McCarthy e posso dizer que fiquei muito impressionado.
O romance tem algo de “velho oeste”, com muitos tiroteios, mortes e alguma selvageria. Em resumo, tudo gira em torno de uma bolsa de dinheiro (com milhões de dólares) encontrada acidentalmente por Lwelyn Moss, que, enquanto caçava antílopes, vê-se dentro de um cenário de guerra advindo de um tiroteio ali havido. Não se descreve muito bem o que aconteceu, mas, à medida que o leitor avança na narrativa, percebe que o conflito se dera em virtude de tráfico de drogas. Moss, cedendo à tentação, toma para si a bolsa e, ao fazê-lo, mergulha a si mesmo e à sua esposa no inferno de uma caçada incansável de que passam a ser, eles próprios, os antílopes a serem abatidos.
Mas não é Moss o protagonista do enredo. A maior parte dos leitores atribuirá esse papel ao sanguinário Chigurh, que é precisamente quem se põe a caçar Moss e sua esposa. Trata-se de um estereotipo muito comum ao menos em filmes americanos: o assassino frio, calculista, implacável e infalível, que, mesmo nas situações mais dramáticas mantém o pleno controle de si mesmo.
Os que assim entenderem, porém, não acertaram o alvo. O verdadeiro protagonista do romance não é Chigurh. Esse que é apenas o personagem que domina as cenas. O protagonista de fato é o xerife Bell, que, numa leitura desatenta, passaria por um personagem de segunda linha.
Todo o romance, na verdade, gira em torno não das cenas de ação, mas da percepção melancólica por parte Bell de que a criminalidade encarnada por Chigurh é muito diversa daquela que costumava a enfrentar e, contra ela, não tem ele qualquer possibilidade de vitória. E, numa simbologia elevada à segunda potência, Chigurh e seus crimes são o subproduto de uma mudança drástica da sociedade americana, drástica o suficiente para que Bell, ao final das contas, perceba que o país em que vive não é mais o mesmo em que costumava viver. Nesse país, pessoas como ele, que se habituaram às tradições antigas, não têm lugar. O nome do romance (“No country for old men” — traduzido no Brasil como “Onde os velhos não têm vez”), revela, então, sua razão de ser. Os novos EUA eram tão diferentes dos originais que Bell simplesmente se tornara um apátrida vivendo em seu próprio país.
Naquele que eu considero como o trecho chave do livro, Bell, pensando consigo mesmo, afirma:
Li nos jornais por aqui há um certo tempo que alguns professores encontraram uma pesquisa que foi enviada nos anos trinta para algumas escolas no país. Tinha um questionário perguntando quais eram os problemas em dar aulas nas escolas. E eles acharam esses formulários, tinham sido preenchidos e enviados de várias partes do país respondendo a essas perguntas. E os maiores problemas que conseguiam citar eram coisas como conversar em sala de aula e correr nos corredores. Mascar chicletes. Copiar dever de casa do colega. Coisas desse tipo. Então eles pegaram um desses formulários que estava em branco e imprimiram um punhado deles e mandaram para as mesmas escolas. Quarenta anos depois. Bem, eis que chegam as respostas. Estupro, incêndio criminoso, assassinato. Drogas. Suicídio. Então eu penso sobre isso. Porque boa parte das vezes em que eu digo qualquer coisa sobre como o mundo está indo para o inferno as pessoas meio que sorriem e dizem que estou ficando velho. Que esse é um dos sintomas. Mas meus sentimentos a esse respeito são que alguém que não saiba a diferença entre estuprar e assassinar pessoas e mascar chiclete tem um problema muito maior do que o meu. Quarenta anos também não são muito tempo. Talvez os próximos quarenta façam alguns deles saírem do éter. Se não for tarde demais.
Uma diferença brutal no espaço de uma geração! De um país com crianças cujas travessuras se resumiam a mascar chiclete e colar na prova, para outro no qual elas vivem em meio a estupros, assassinatos, consumo de drogas e suicídio. Os criminosos da era do chiclete e da cola escolar eram de uma natureza; os da era dos estupros, assassinatos e suicídio, de outra. Os xerifes aptos a lidar com aqueles eram uns; os que têm alguma chance contra esses, outros, tão duros, implacáveis, imorais e sanguinários quanto seus oponentes do crime.
Um pouco mais adiante, ele revela que, numa conferência qualquer, conversou com uma mulher “esposa de alguém mais ou menos importante” e que, no meio da conversa, dissera-lhe o seguinte: “Não gosto do rumo que este país está tomando. Quero que a minha neta possa fazer um aborto.”
Então, Bell encerra a reflexão com uma previsão que é tanto mais amarga quanto certeira:
E eu disse bem minha senhora não acho que precise se preocupar com o rumo deste país. Pelo que eu vejo não tenho muitas dúvidas de que ela não só vai poder fazer um aborto como vai poder fazer com que sacrifiquem a senhora. O que mais ou menos encerrou a conversa.
Poucas vezes vi uma visão de mundo passada de forma tão contundente num texto literário. A nova América, de fato, não era mais para o xerife Bell. A questão que ele se põe é como, então, lidar com essa incompatibilidade.
O livro termina com a narrativa de um sonho curioso e cheio de mistério. No sonho, o pai de Bell aparece, no meio do frio e da escuridão, carregando consigo um chifre aceso em fogo e passando adiante. Não vou dizer aqui minha interpretação do sonho, mesmo porque o autor, ao não dar interpretação alguma, quis deixar para que cada leitor o fizesse.
Termino com duas notas.
A primeira, refere-se à infelicidade rara na tradução, para o cinema brasileiro, do título do filme gravado com base no romance. Por aqui, resolveu-se traduzir como “Onde os fracos não têm vez”. Como alguém traduz “old men” por fracos? Isso lá é tradução? Quem optou por ela simplesmente não entendeu a essência do romance e viu nele uma espécie de faroeste moderno. O que saltou aos olhos do indivíduo foi antes a brutalidade e a frieza de Chigurh e provavelmente viu nelas a essência da história. As reflexões que os crimes de Chigurh causaram na alma de Bell provavelmente passaram-lhe despercebidas...
A segunda — e talvez, aqui, a única anotação negativa que faço ao romance — se refere ao estilo do autor, que opta, durante todo o texto, por não usar travessões e por economizar tanto em sinais de pontuação que, não raro, faz o leitor cair em ambiguidades. O estilo sucinto, contudo, e o uso frequente da conjunção “e”[1], dá às cenas do texto um caráter quase cinematográfico. Poucas vezes li um romance conseguindo imaginar tão bem os que os personagens viviam. Mas que um rigorzinho maior com a pontuação faz diferença, isso faz!
[1] Apenas como exemplo, cito um trecho — entre centenas de outros — tirado ao mais puro acaso: Ficou ali, o revólver do subdelegado nas mãos. Olhou dentro da cozinha. Foi até o quarto. Atravessou-o e abriu com um empurrão a porta do banheiro e entrou no segundo quarto. Roupas no chão. A porta do armário aberta. Ele abriu a gaveta de cima da cômoda e fechou novamente. Colocou a arma de volta no cinto e puxou a camisa para cobri-la e voltou à cozinha. Abriu a geladeira e tirou dali uma caixa de leite e abriu e cheirou-a e bebeu. Ficou ali parado segurando a caixa de leite com uma das mãos e olhando pela janela. Bebeu outra vez e então colocou a caixa de volta na geladeira e fechou a porta.