Lilith e o mundo moderno
O reavivamento de uma figura mitológica que diz muito sobre os tempos atuais
Há, nos tempos atuais, um fenômeno interessante, que guarda, para os que o analisam com cuidado, um forte vínculo simbólico com o mundo moderno. Trata-se de uma curiosa — e reveladora — valorização da figura mitológica de Lilith, uma “deusa” pagã cultuada em todo o crescente fértil na antiguidade. Lilith, atualmente, ressurge do esquecimento alçada pela onda do “empoderamento” — odeio essa palavra, mas, fazer o quê? — feminino. Mas, será que, realmente, as mulheres, ao menos as brasileiras, gostariam de ver seus interesses vinculados a essa figura mitológica?
Para responder a essa questão, é preciso saber-se exatamente quem seria Lilith. Vamos conhecer um pouco do mito, tomando por base sua representação na cultura judaica, mais próxima de nós do que, por exemplo, a babilônica na qual Lilith também aparecia.
Usarei, para tanto, como base o livro “As lendas do povo judeu”, de M. J. Bin Gorion, publicada pela Editora Perspectiva. [1]
Lilith, segundo Bin Gorion, teria sido a primeira mulher criada por Deus. Sua criação se deu a partir da terra, mesma matéria de que Ele se utilizou para trazer Adão à vida. Dela, Adão não podia dizer que era “carne de sua carne e osso de seus ossos”, como, depois, diria de Eva. Por sua própria natureza, mais do que esposa, Lilith era irmã de Adão e, sendo assim, não aceitou sujeitar-se a ele. Houve, então, uma rusga entre o casal e “quando Lilith viu que não havia paz, proferiu o verdadeiro nome de Deus e levantou voo”.
Levantou voo? Que coisa curiosa... Até não é difícil imaginá-la, a partir dessa narrativa, abrindo asas numa figura mais angélica do que humana e deixando para trás o Jardim do Éden. Mas, como alguém criado com a mesma natureza de Adão levanta voo? O que teria acontecido e o que tem isso a ver com o fato de ter ela pronunciado o verdadeiro nome de Deus?
Não há uma resposta clara. Mas, na sequência da história, vê-se que Deus tenta fazer Lilith se arrepender e retornar a Adão, sob pena de ter de “aceitar o fato de que irão morrer cem filhos seus diariamente”. Algo de grave, então, ela fez. Há, escondida na breve narrativa, uma séria desobediência de Lilith. Qual seria? A briga com Adão e sua recusa em se sujeitar a ele? Ou, como parece ser mais certo, o fato de ter ela pronunciado o nome de Deus — pronúncia essa que seria, nesse caso, proibida — e assumido a forma de um anjo decaído? Seja como for, ela já não é mais tratada, desde então, como um ser da mesma natureza de Adão. Tanto que foge para o mar, passando a habitar no ponto das águas “onde mais tarde os egípcios se afogariam”, o que, claro, não seria possíveis para pessoas humanas comuns. Deus ainda manda anjos para tentar demovê-la, mas ela os rejeita com uma frase contundente: “Deixem-me! Não sabeis que fui criada em vão e que é meu destino dizimar recém-nascidos: quando é um menino, tenho poder sobre ele até o oitavo dia; se é menina, até o vigésimo”. O diálogo, como se vê, é, também ele, repleto de mistérios. Como chegou Lilith à conclusão de que sua criação fora vã? E, sobretudo, quem deu a ela a missão de “dizimar recém-nascidos?”. Essa “missão” tétrica seria uma espécie de reação à pena divina de ver seus próprios filhos mortos diariamente caso não se arrependesse de sua fuga?
De novo, não há uma resposta clara. Mas, se alguma clareza há, é a de que a figura dessa que seria a primeira mulher, aquela que se quer ter tomar como símbolo do “empoderamento” feminino, vai ganhando, cada vez mais, os contornos de um demônio puro e simples.
Um pouco mais à frente, após a queda de Adão e Eva, Lilith, efetivamente, passa a exercer uma atividade maligna e sombria sobre crianças. Incapaz de aproximar-se dos céus, ela vagueia pela terra e “se encontra crianças que devem ser castigadas, começa a brincar com elas e as mata”. E que pecados cometeram essas crianças que devem ser castigadas? Aqui, temos uma resposta: nenhum. O castigo que recai sobre elas — insisto: sempre segundo o mito — é o devido ao pecado dos pais:
Mas, depois que Adão e Eva cometeram o pecado, o Senhor tirou Lilith novamente das profundezas do mar e lhe concedeu o poder sobre a vida das crianças; deveriam sofrer os castigos pelos pecados de seus pais.
Lilith torna-se, assim, uma assassina de crianças inocentes... Que belo símbolo para a luta das mulheres contemporâneas...
Mas, para que se cumprisse a ameaça divina de que ela própria veria seus filhos morrerem às dezenas todos os dias, seria necessário que Lilith fosse mãe. E quem viriam a ser os seus filhos? Bem, ela, após a queda de Adão, acaba seduzindo-o e, copulando com ele, vem a conceber “um sem número de diabos, espíritos e demônios”. A mulher que mata crianças inocentes de pecados pessoais é, ela própria, mãe de espíritos malignos.
Aqui, fica clara a ligação do mito com o mundo moderno, que não serve como símbolo do “empoderamento” feminino como querem alguns. A simbologia — que agora já é evidente para quem me acompanhou até aqui — é outra: Lilith é uma mulher que, tornando-se inimiga do homem, revolta-se contra ele e contra Deus, e, como vingança de suas próprias dores, passa a odiar os filhos inocentes de Adão. Ela representa, muito bem, a atual onda ideológica que contrapõe sexo contra sexo, que se revolta com a natureza das coisas e que se e que se volta contra crianças inocentes.
O problema é que Lilith é exposta com ares de sofisticação, independência e sensualidade. Mas, em si mesmo, ela nada mais é do que um ser atormentado, repleto de ódio, mãe de seres malignos e assassina de crianças.
Penso que, ao menos para a imensa maioria das mulheres, a resposta à pergunta lançada no começo do texto é evidente. Particularmente, não conheço nenhuma que realmente gostaria de um ser tão sombrio como ícone de suas lutas.
[1] O termo “Lilith” (לילית) aparece apenas uma vez em todo o Antigo Testamento, em Is 34, 14. Trata-se de uma profecia contras nações em geral e contra Edom em particular, que seriam desoladas pela ira de Deus. No versículo mencionado, lê-se: “Nela se encontrarão cães e gatos selvagens, e os sátiros chamarão uns pelos outros; Lilith frequentará esses lugares e neles encontrará o seu repouso”. Em muitas traduções, porém, tanto no campo católico como no protestante, a palavra “Lilith” é traduzida como “espectro da noite” ou “espírito da noite”.